Machismo matou 2 mulheres por mês em Mato Grosso do Sul durante 2017

 / Wendy Tonhati

O feminicídio é a morte “apenas por ser mulher”. Com base nas estatísticas é fácil constatar que a maioria das mulheres, vítimas de morte violenta, não morrem ao se envolverem em brigas, por reagir a um assalto, no tráfico de drogas ou opor outro motivo. As mulheres são mortas pelas mãos daqueles que escolheram dividir uma vida: companheiros e ex-companheiros.

Quer fazer um teste rápido? Escreva “morta pelo” e “morto pelo” no Google e vê o que aprece. Na última semana, esta imagem circula pela internet como o nome “O algoritmo do feminicídio”. Ela mostra as buscas mais recorrentes no Google de ambos os termos.

 

 

Mesmo assim, ainda há -principalmente homens - a insistir na ideia que não é necessário que exista lei para proteger as mulheres, utilizando argumentos como “todos os dias morrem mais homens do que mulheres”, além de piadas com a Lei Maria da Penha ou pedindo uma lei “João da Penha”.

Leis para proteger as mulheres são necessárias

Sobre este tipo de argumento, a promotora Luciana do Amaral Rabelo, titular da 72ª Promotoria de Justiça de Campo Grande - Casa da Mulher Brasileira, explica que os homens, quando são agredidos, são protegidos pelo Código Penal, mas, foi preciso criar uma lei específica para proteger as mulheres, exatamente porque se encontram em desigualdade na sociedade.

“Mulheres estão sendo mortas pelo simples fato de serem mulheres, por conta do machismo, porque homens não aceitam o término de um relacionamento, enquanto os homens morrem por questões diversas. Por conta do grande número de mortes de mulheres por discriminação e menosprezo ao gênero feminino, e em situação de violência doméstica e familiar, foi preciso a criação da lei específica e de mecanismos como as medidas protetivas, para evitar tais crimes e proteger melhor as mulheres vítimas de violência”, afirma a promotora.


Uma mulher assassinada a cada 2 horas

Na primeira semana de novembro, o 11° Anuário de Segurança Pública divulgou o alarmante número de uma mulher assassinada a cada 2 horas em 2016, no Brasil. Mas, apenas 533 casos foram classificados como feminicídios, demonstrando as dificuldades no primeiro ano de implementação da lei. A publicação mostra que foram 34 feminicídios no Estado, em 2016.

Em Mato Grosso do Sul, quando uma mulher é assassinada sob essas circunstâncias, um boletim de ocorrência por feminicídio é registrado. Mas, em nem todos os estados o procedimento é esse.

Em Pernambuco, por exemplo, em setembro deste ano, um decreto estadual substituiu a nomenclatura "crime passional" e instituiu o uso de "feminicídio". O Rio Grande do Sul instituiu o uso do termo na semana passada, mas, a Polícia Civil só vai começar a usar a partir de 1° de janeiro de 2018.

 

A juíza Jacqueline Machado, coordenadora estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar e titular da Vara de Medidas Protetivas, na Casa da Mulher Brasileira, explica que em Mato Grosso do Sul houve a implementação das diretrizes para investigar, processar e julgar os delitos de Feminicídio, propostas pela ONU (Organização das Nações Unidas) em parceria com o Governo do Estado, onde participaram todos os órgãos diretamente ligados à investigação e processamento das mortes violentas de mulheres em razão de gênero.

 

“Pode-se dizer que estamos bem no funcionamento desta estrutura, sendo óbvio que sempre teremos que buscar avanços nesta seara. Aqui na Capital temos uma Vara exclusiva para análise das medidas protetivas de urgência às mulheres e audiência de custódia dos agressores, que é um marco como mecanismo de proteção às vítimas, bem como a Casa da Mulher Brasileira”, destaca a magistrada.

A resistência do poder público em aceitar que mulheres morrem todos os dias, apenas por serem mulheres também prejudica as estatísticas.

O resultado são distorções da realidade. Diante da inconsistência de números e da falta de um número oficial do governo Federal, são necessárias iniciativas como o Anuário de Segurança Pública é elaborado pelo Fórum de Segurança Pública.

Porém, após a divulgação, estados questionam os números divulgados anualmente na publicação.

O Anuário cita 'qualidade dos dados' fornecidos pelos estados. Mato Grosso do Sul aparece na segunda categoria com “qualidade intermediária das informações”.

“É importante que os dados sobre a violência doméstica e sobre o feminicídio sejam divulgados para a sociedade, bem como, o levantamento de tais dados seja feito de forma correta. E isto porque somente com o diagnóstico preciso da violência, poderemos traçar políticas públicas para o seu combate” explica a promotora.

Para Luciana, a integração de diversos órgãos de enfrentamento à violência doméstica na Casa da Mulher Brasileira facilita o acesso das vítimas de violência à justiça, bem como, é um importante instrumento para a redução das cifras ocultas da violência.

“Como se encontram em um mesmo local para atendimento a Deam (Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher), o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Público, facilita que a vítima faça a denúncia e também possa acessar a rede de atendimento e resolver as demais questões necessárias para sair do ciclo de violência. Assim, as informações chegam mais rápido não só ao Ministério Público, mas ao Poder Judiciário, bem como, possibilita uma maior interação entre as instituições, diz a juíza”.

Educação para enfrentar

Para a juíza Jacqueline Machado, a violência de gênero é totalmente democrática. Atinge mulheres do mundo todo e de todas as classes sociais. É uma violência que se fundamenta em uma cultura patriarcal, que diminui as mulheres e limita os espaços em que podem transitar na vida privada e pública, atinge os direitos fundamentais das mulheres, sendo embasada pela desigualdade de gênero

Segundo a magistrada, não existe a possibilidade de modificação do cenário da violência contra as mulheres, sem que se busque de fato a igualdade de gênero. Ainda que existam leis como a Lei Maria da Penha ou a Lei do Feminicídio, não muda, por si só, as pessoas e nem a sociedade.

“A educação tem um papel fundamental na desconstrução de preconceitos. Fica evidente no caso brasileiro que o preconceito faz parte de nossa sociedade. Ela é reflexo do nosso modo de colonização, que reproduz os valores de uma sociedade estamental, patriarcal, machista e sexista. Assim é imprescindível que a educação formal, nas escolas, contribua com este papel de desconstrução e amenização dos preconceitos.

Uma sociedade plural e democrática, como é a brasileira, não pode conviver com preconceitos. Há a necessidade de reconhecimento e respeito ao outro em sua dignidade seja ele rico ou pobre, branco, preto ou índio; cristão ou ateu, homem, mulher, gay, lésbica, transgênero, etc. Não podemos é conviver com a intolerância e esse discurso de ódio que é extremamente prejudicial a todos e está tomando conta de nossa sociedade”, diz Jacqueline.

 

 

A promotora Luciana também aponta a educação como fator de mudança no comportamento. Segundo ela, necessário a mudança de comportamento da sociedade, com investimento em educação, para que as mulheres sejam realmente tratadas de forma igual pela sociedade, e com a criação de políticas públicas voltadas para que essa igualdade realmente aconteça, com maior acesso das mulheres à educação, redução das desigualdades nas relações de trabalho, haverá redução das formas de violência praticadas contra a mulher, dentre elas, o feminicídio.

“A transformação da sociedade ainda vai levar anos, mas temos de começar agora, educando as nossas crianças e alertando a sociedade para que não aceite nenhum tipo de violência contra as mulheres, e não tolere mais que tais condutas continuem a ocorrer.

A sociedade não pode mais aceitar que meninas sejam forçadas a se casar, que a mulheres ainda ganhem muito menos que os homens, mesmo quando desempenham as mesmas funções, casos de mutilação genital, abuso sexual em transporte público, entre outros tipos de violência.

É lógico que a criação da Lei Maria da Penha, de políticas públicas voltadas para combater a violência doméstica, como a Casa da Mulher Brasileira, a sociedade está mais atenta para tais crimes e tem acolhido as vítimas, mas ainda temos um longo caminho para que tais crimes não ocorram mais”, diz a promotora.

 

 

Contra o esquecimento

Os processos por feminicídio podem se arrastar por anos até que o responsável seja julgado as vítimas, muitas vezes, já caíram no esquecimento. Em Mato Grosso do Sul, os dois primeiros casos de feminicídio, foram os assassinatos de Janaina Cristina de Oliveira, 19 anos, em 23 de maio de 2015, em Ivinhema – a 297 quilômetros de Campo Grande - e o de Isis Caroline da Silva, 21 anos, que desapareceu em 1° de junho de 2015, em Campo Grande, e teve o corpo localizado cinco dias depois em Ribas do Rio Pardo –a 97 quilômetros da Capital.

O primeiro caso, foi julgado cerca de um ano após o crime e resultou na condenação de Sebastião Viana Filho, 31 anos, a 15 anos de prisão. Já o segundo, só foi julgado neste ano e terminou com o acusado, Alex Armindo Anacleto de Souza, 34 anos, condenado a 26 anos de prisão.

Jornal Midiamax fez um levantamento com base em todas as matérias publicadas neste ano e também solicitou à Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública) os dados de boletins de ocorrência registrados como feminicídio. Duas vítimas relacionadas pela Sejusp não foram noticiadas.

Quem ama liberta

Para que as mulheres que perderam a vida pelas mãos dos companheiros e ex-companheiros, não sejam apenas estatística, um número sem nome, as famílias criam formas de lutar com a dor e não deixar que as vítimas sejam esquecidas.

É o caso da página “Quem Ama Liberta” administrada pela professora aposentada Regina Jardim. Diariamente, ela posta fotos de mulheres mortas em decorrência da violência doméstica em todo o Brasil. O registro quase que diário é feito desde a época do Orkut, quando ela perdeu a filha, Priscila Regina Jardim, então com 29 anos, em 2007.

Priscila Regina foi uma das vítimas da violência de gênero. Ela foi morta, em uma boate do Vale do Paraíba, com cinco tiros à queima roupa após terminar o namoro com Alexandre Bittencourt de Oliveira e Souza, 27 anos. Segundo testemunhas, os dois começaram a discutir e ela entrou em seu carro para ir embora. Priscila tentava se desvencilhar da discussão e estava com duas amigas. Souza foi até a porta do carro e fez seis disparos. Três disparos atingiram a cabeça e o abdômen da jovem, que morreu na hora.

 

 

Regina alerta para o que chama do mito de Eva, em que a muher passa a ser a responsável pela própria morte, sendo atribuído a ela o papel de sedução do homem.

Leia o depoimento de Regina ao Jornal Midiamax

Como mãe, sempre ficava preocupada com acidentes e assaltos, jamais pensei em viver uma situação dessas. Quando minha filha foi assassinada, era feriado de Corpus Christi e eu dormi tranquila, pois ela tinha decidido não viajar.

Acordei às 5 da manhã, com a notícia dada por telefone. Durante o tempo que o assassino ficou foragido, eu passava dia e noite, enviando fotos dele, através do Orkut. Nesse período conheci famílias de todo o Brasil, que viviam o mesmo drama.

Depois de preso, o tempo foi passando e fui percebendo que as pessoas iam se esquecendo das vítimas, predominava o mito de Eva: a mulher passa a ser culpada pela sedução, o homem é o coitado, foi uma vítima dessa sedução. Eu não queria que minha Priscila fosse esquecida, isso doía muito, não queria que tantas mulheres fossem esquecidas, pensava nas outras filhas, na minha neta, nas minhas alunas.

Com a ênfase na lembrança das que se foram, muitas mulheres começaram a conversar comigo inbox, não querem se identificar e vivem situações horríveis de violência doméstica, mas existe o medo de "virar flor". Criamos a expressão para o significado de morrer. (Eu não queria colocar fotos de corpos, assim quando não tinha foto, eu colocava uma flor.

As pessoas dizem que os índices de feminicídio vem aumentando, eu concordo, ele aumenta de acordo com o empoderamento da mulher. Minha filha morreu, pois, disse não, as que viram flor são aquelas que enfrentam o medo e que não são dependentes do homem.

A mulher é humilhada ao fazer a denúncia. Muitas vezes perguntam À elas sobre o que fizeram "para merecer isso", fazem o BO e deixam de lado, aquela velha história de "briga de marido e mulher não se mete a colher", "mulher gosta de apanhar", "sem vergonha, voltou para ele de novo".

É preciso investir na educação, pois o homem não está preparado para o empoderamento feminino, predomina a educação machista”.