O ex-traficante Ailton Batata, 62, descobriu pela televisão que a história da sua vida havia virado filme. Ele esperava o começo da novela em sua cela, no complexo presidiário de Bangu, no Rio, quando viu o anúncio da estreia de Cidade de Deus, baseado no romance homônimo de Paulo Lins.
Na versão de Fernando Meirelles, Batata, único sobrevivente da guerra que tomou conta da favela no fim dos anos 1970 e principal oponente de Zé Pequeno, virou Sandro Cenoura. "Gritei, 'que mané Cenoura, esse cara sou eu!'", lembra.
De lá para cá o crime na cidade e no Estado se sofisticou, a Cidade de Deus cresceu, mas a violência segue predominando na região. Enquanto Batata conversava com a reportagem do UOL sentado no pátio de uma das escolas do complexo em uma quarta-feira pela manhã na metade de agosto foi possÃvel ouvir ao menos três rajadas de tiros.
A poucos metros dali, barricadas impediam a entrada de carros na favela, que conta com uma Unidade de PolÃcia Pacificadora desde 2009. Um levantamento elaborado pelo aplicativo Fogo Cruzado, vinculado à Anistia Internacional, coloca o bairro em terceiro lugar em número de tiroteios, com ao menos uma troca de tiros a cada dois dias no último ano.
"Quando começa assim segue o dia inteiro", lamenta o ex-traficante, hoje funcionário da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura. "Antigamente o pessoal respeitava mais, não tinha gente armada na rua, ninguém usava nada na frente do morador."
Pouco antes de deixar a prisão, ele conta que chegou a ser convidado para voltar ao "movimento". Se preparava para isso quando viu a chamada do filme e, já no semiaberto, foi procurar a antropóloga Alba Zaluar, que orientou Lins durante a escrita do livro, para entender como tinha passado de Batata a Cenoura --como ele foi o único que restou da guerra com Zé Pequeno, seu nome acabou trocado por questões de direitos autorais.
“As pessoas existiram, eu reconheci muita gente ali, mas não foi daquele jeito. Eles entrevistaram aquele pessoal que na favela a gente chama de fofoqueiro, que fica falando no portão sobre o que aconteceu na noite anterior sem sem saber direito das coisasâ€.
Ela se dispôs a escrever um outro livro, contando a sua história, e o ajudou a conseguir um emprego. "Não fosse por ela... Tinha gente [do tráfico] me esperando já, mas pedi desculpas, disse que não ia dar, queria outra vida", lembra.
O lançamento de "Cidade de Deus — A História de Ailton Batata, o sobrevivente", escrito por Alba em conjunto com o psicanalista Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, e lançado pela editora FGV em agosto, coincidiu com o aniversário de 15 anos da saÃda da prisão de Batata e do filme, lançado em 2003. Ele chegou a deixar o tráfico e foi preso pouco tempo depois, por homicÃdio, ficando também 15 anos preso.
"Ninguém tem interesse no fim do tráficoâ€.
Baixinho e carismático, Batata -- que prefere não mostrar o rosto por conta do trabalho que realiza ajudando moradores de rua por toda a cidade como educador social--, diz que Zé Pequeno era ainda menor que ele e lembra entre risos das batalhas que tiveram pelo domÃnio da região. Diz que já o recebia com duas armas debaixo do braço. "Ele dizia: 'você não vai cumprimentar o amigo?' Mas se eu cumprimentasse, largasse a mão da arma, já vinha bala."
A guerra, diz ele, acabou "por falta de soldados", todos mortos nos tiroteios entre os dois grupos. Algumas balas seguem com ele até hoje.
"Cada vez que eu tiro raio-x da coluna o médico vem me dizer que tem um corpo estranho. Repondo: 'isso não é corpo estranho, é herança'", diz, apontando para as diversas marcas de tiros e facadas que tem no corpo.
Batata evita falar de polÃtica e mesmo da situação geral da segurança no Estado; prefere se ater à sua história. Ele guarda com carinho uma pasta com recortes das reportagens das quais participou nos últimos anos.
Para ele, um dos precursores da venda de drogas na Cidade de Deus nos anos 1970 --o ex-traficante chegou a gastar todo o dinheiro da indenização trabalhista que recebeu ao deixar um emprego como servente na zona sul da cidade em armas e drogas--, o tráfico nunca vai acabar.
“[O tráfico] não acaba não. Ninguém tem interesse nisso. Tem muita gente graúda, que ganha muito dinheiro com issoâ€.]
Questionado sobre o passado, se sente falta do tráfico, diz que nunca quis de fato ser criminoso. "Eu gosto de viver essa vida que eu vivo hoje. Livre, de cabeça erguida, podendo ir para qualquer lugar.